Caminho sem correntes pelas ruas. Quisera eu caminhar sem roupas, pois o calor derrete até pedra no verão chinês. Tudo bem, estou exagerando um pouquinho, mas só um pouquinho mesmo. O suor escorre pelas minhas pálpebras e cílios para dentro dos olhos, me deixando constrangida e com a visão embaçada. Tenho que secar meu rosto, dobras dos braços, as mãos e em torno do pescoço de tempos em tempos, em curtos intervalos. É sufocante estar à quarenta graus com sensação térmica de 48, 52 e até 55, como tenho visto. O negócio é sair de casa para o Starbucks ou ao Maan com May ou mesmo sozinha, como de costume. Há também a chance de ir à piscina, pagar 25 RMBs e desfrutar de momentos divertidos na esquina das esculturas de sapos que vigiam a piscina funda. É o spot predileto de May e passou a ser o meu também.
O sol não queima como na costa nordeste do Brasil. Ele cozinha a gente, mas, pelo menos, é uma chance de tirar o mofo dos intermináveis dias chuvosos do inverno e da primavera. O ar-condicionado em casa é indiferente, entediante, silencioso, não tem sabor, nem cheiro de café, nem de gente. Tenho daquelas coisas de querer ouvir sons diferentes, e que não sejam só das minhas playlists nem de minhas falas solitárias com os objetos da casa. Gosto também de ouvir o som das vozes dos outros, porque assim sei que há outros, mesmo que estejam do outro lado da parede que construí mentalmente com a ajuda dos meus óculos de grau e meu headphone blue tooth.
Chamo a parede de “bolha”, mas vou explicar: quando a primavera estava em seu auge, o vírus voltou a assombrar os chineses. Estávamos indo tão bem! O problema foi que alguns dos estrangeiros e dos chineses que estiveram fora da China em férias durante o ano novo chinês e que estavam voltando tardiamente para trabalhar carregavam o vírus consigo, mas não tinham sintomas. E lá estávamos nós, os estrangeiros, agora na berlinda, prontos para sermos chutados prancha abaixo por qualquer chinês que se sentisse ameaçado pelo nosso poder de destruição em massa de explosão atômica. As pessoas desviavam da gente como se fôssemos o próprio vírus. O caso ficou tão sério, que um grupo de estrangeiros mandou imprimir camisetas e agasalhos com frases que diziam coisas como: “Eu não sou o vírus.” Era triste e constrangedor ao mesmo tempo.
Então, para enfrentar mais esse isolamento, mesmo estando em meio à multidão, eu criei a minha própria bolha da invisibilidade. Eu a ativava no exato momento que ligava o Spotify em meu celular. Eu pilotava minha bolha como se invisível fosse. Assim, lá de dentro dela, eu dancei sem par no parque Yinzhou 鄞州公园(Yinzhou gongyuan)ao som de Liniker e de Tulipa Ruiz, apostei velocidade com a sincronia dos faróis de trânsito enquanto pedalava pela前河南路 (qianhe nan lu) e pela天童南路 (tiantong nan lu), meditei nos bancos dos parques, comi sushi enquanto caminhava pelo shopping e cantei minhas músicas prediletas a pulmões abertos no elevador sem me importar com quem me ouvisse.
Agora, com o verão, pop, lá se foi minha bolha da invisibilidade. Meu espírito, regido pelo sol, tem fome de ser visível. Preciso que as flores me vejam, que os pássaros me vejam, que as libélulas me vejam, as cigarras, os vagalumes. Preciso de verão na minha pele, de luz para ver e ser vista pelas coisas encantadoras do mundo. Quero subir montanhas e molhar meus pés nas cachoeiras. Preciso me emocionar! Estou solta e pronta para elas. Ah, que força têm as montanhas sobre meu espírito de loba! A mesma força têm os lagos, as cachoeiras, os riachos, as matas.
Na verdade, sigo as libélulas. Que criaturas lindas essas moscas-dragão, se traduzido do inglês. Elas pairam sobre tudo que vibra a vida e tem frescor no verão chinês. As libélulas dançam, brincam, festejam a estação todos os dias, em todos os lugares em que verde e água se misturam.
Que música ouvem enquanto dançam? A música das cigarras, é claro, mas essa é outra história a ser contada.
Texto: Giédre Benatto – colaboração
Foto: Daniel Borker por Pixabay
Quanta sensibilidade nesse maravilhoso texto! Parabéns a autora.
Obrigada, Clécia!
Lindo amei!!! Parabéns Giédre !!
Obrigada, Estela! Bjs