Era mais um amanhecer preguiçoso, na China. Os amanheceres parecem mais preguiçosos
quando o sol, em disfarces nebulosos que mal delineiam sombras, não bota a cara para fora,
como naquela manhã. Os vidros do apartamento 2702, no vigésimo sétimo andar, eram escuros
e por fora refletiam o céu. Lá dentro, quando não havia sol de sombrear, tudo ficava ainda mais
escuro.
A plantinha que ficava na janela lutava muito para sobreviver à falta de luz. Ela foi minha única
companhia viva por meses, na pandemia. Sua luta pela vida era intensa. Ainda um galhinho, eu
a levava comigo quando saía de casa para ir ao mercado ou caminhar. Lá embaixo, eu a deixava
aos pés de uma árvore do outro lado da rua para que o sol a banhasse até eu voltar das compras
e recolhê-la. O jardineiro público já me conhecia. Ele sempre perguntava como estava a
plantinha, quando eu o encontrava nas imediações do meu prédio. Era ele que a protegia
enquanto ela tomava sol.
Naquela manhã, porém, uma mosca entrou em casa. Fiquei radiante! Dei até nome a ela, já que
seria o terceiro ser vivo na casa, além de mim e minha plantinha. Era mais “alguém” com quem
eu poderia falar, uma vez que eu passava dias em casa sozinha. May, a única amiga com quem
eu trocava mensagens de áudio, tinha o hábito de caminhar por horas à noite, e dormir de dia.
Assim, a mosca e minha plantinha tornaram-se aquelas com as quais eu compartilharia meus
pensamentos a qualquer hora, enquanto eu estivesse em casa. Mais tarde, eu aprenderia a
conversar com tudo na casa, principalmente a lava e seca, dama discreta; a geladeira que gemia
como que a queixar-se do tempo; minha torradeira, que parecia se divertir com os saltos
acrobáticos das torradas quando prontas; o bule elétrico escandaloso, excêntrico e o fogão por
indução, temperamental e carente de atenção. Porém, um belo dia, a mosca Feifei 飞飞 (voavoa em chinês) simplesmente desapareceu e não a vi mais. Passados alguns dias, numa tarde
em faxina, eu a encontrei dura e seca, como diria minha mãe, de perninhas para cima sem vida,
no canto atrás da cortina que eu suspendera para varrer o chão. Chorei. As lágrimas desciam até
o queixo. Quem diria que eu choraria a morte de uma mosca amiga? Compreendi ali, com minha
alma, aquilo que o personagem de Tom Hanks em “O Náufrago” sentiu depois que Mr. Wilson,
a bola que se tornara sua única e preciosa companhia, se perdeu no mar. As coisas realmente
têm o valor que damos a elas.
Estar só nos ensina a sermos mais generosos, abertos ao diferente ou mais ranzinzas e fechados
ao mundo. Eu me joguei de cabeça na generosidade para com as pequenas coisas, para não
perder o juízo. A generosidade é um jeito de se doar à vida, é tipo um código. Minha dificuldade
estava em me doar a mim mesma, sem sentir culpa.
A auto generosidade parece algo tão natural em minhas irmãs. Por que razão seria tão difícil
para mim? Talvez isso tivesse sua origem nos tempos de infância, das nossas limitações
financeiras. Eu me sentia culpada e envergonhada por às vezes precisar de coisas que meus pais
não podiam me dar e cresci com a ideia de que eu tinha culpa por isso, mesmo não sendo eu
filha única, mas a terceira de quatro. Essa ideia deve ter se instalado em meus hábitos de tal
forma, que depois de adulta continuei tendo sempre uma desculpa para me privar de muitas
coisas boas. Me faltava vencer ainda essa limitação. Assunto para um bom divã, com certeza.
Porém, aprendi um bocado sobre generosidade com minha planta e 飞飞, a mosquinha, que me
fizeram companhia naqueles dias sombrios.
A planta, em agradecimento pelos adoráveis banhos de sol, germinou folhas lindas ainda dentro
da terra. Eu as podia ver crescer através da transparência do pote plástico onde a plantei. No
verão, ficou linda e vigorosa com a maior oferta de luz. Uma amiga incrível que conheci no
trabalho, mais tarde, a herdou quando parti de Ningbo. Tenho certeza de que ambas têm sido
felizes juntas desde aquele dia!
Texto: Giédre Benatto em colaboração
Foto: internet