Estamos estranhos, ultimamente. Sim, talvez nós estejamos estranhos, talvez nós sejamos vítimas de estranhezas da época, do ambiente, das relações. Por esse entendimento, o estranho é, na verdade, qualquer coisa que nos afete e que não saibamos descrever exatamente onde resida nem o que seja. Para uns, um vazio imenso, um eco branco e frio como a neve. Para outros, um lugar sem memórias, sem afetos nem desafetos, apenas de sucessivos acontecimentos entrelaçados. Para outros ainda, o único lugar de entendimento que existe e que conhecem. Para mim, talvez uma caixa escura onde a luz não entra, de fechadura de ferro forjado no fogo que ainda guarda seu maior talento, a resistência.
Isso tudo tem me feito dormir exausta. Parece que travo estúpidas batalhas, a cada dia. Isso só para resistir, sobreviver. Claro que há dias de batalhas que valem a pena. São batalhas quase invisíveis, para salvar algum ser vivo, da flora e da fauna que me circundam, que faz ter valido o dia, que dá sentido ao estar aqui, ou ali, naquele momento.
Semana passada salvei uma libélula das teias de aranha próximas à lâmpada em que se prendera. Salvei também a aranha. Depois, salvei a vida de um filhote de bem-te-vi que não tivera sucesso em seu primeiro voo e caiu no quintal daqui de casa. Desconfiei de algo errado assim que ouvi um miado ameaçador, diferente. Levantei-me no mesmo instante para fazer uma investigação rápida e voltar ao trabalho. Imediatamente localizei Chulé, nossa gata caçadora, acuando o filhote de pássaro entre dois pés de coqueiros jovens plantados em latas, lado a lado. O pequeno tremia muito quando o acolhi em minhas mãos e o livrei do imenso perigo (embora muito fofo) que era Chulé. O pássaro logo se acalmou com os leves afagos que fiz em sua cabecinha. Coloquei-o em um dos meus pratos de papel machê ainda cru. Ele ficou sossegadinho até querer voar novamente. Foi então que fiz seu segundo salvamento. Se os outros bichos da casa o descobrissem, ele estaria perdido. Dessa vez, aceitei que ele não estaria seguro em nosso quintal e resolvi buscar seu bando.
Caminhei com ele em minhas mãos pela calçada que faz a curva na esquina, mostrando-o para todos os bem-te-vis que se exibiam em sobrevoos pela área. Um deles chegou pertinho de nós e logo voou aos gritos, como que comunicando aos outros que havia encontrado o “desajeitado”. Observei o bando atentamente e localizei a árvore onde se recolhiam, ao sol quase posto. Era no pé de jamelão, ou azeitonas roxas, como chamamos aqui no nordeste. Entreguei-o à esposa do caseiro da propriedade onde vive a enorme árvore e expliquei-lhe o que estava se passando. Ela docemente acolheu o filhote e disse que na manhã seguinte seu marido tentaria aproximá-lo de seu bando. Não sei como ele faria isso e ainda não os encontrei para saber o desfecho do caso do bem-te-vi “em voo cego”, mas sei que fiz tudo o que estava ao meu alcance para salvá-lo.
Dessa forma, eu estou sempre a salvar uma vida aqui e ali, de plantas ou bichos. Só na China, por duas vezes em diferentes tempos, salvei pássaros que colidiram contra a janela de minha sala de aula. Também salvei um morcego ferido na pata, caído na escadaria do meu prédio. Aqui em casa, surgiu uma coruja que se acidentou na vidraça do vizinho e ficou desorientada, se pendurando de cabeça para baixo como morcegos. Depois de recuperada da pane de orientação, ela foi-se embora voando em rasantes, deixando apenas as marcas de suas garras fortes em minha mão.
Ainda há lagartixas, joaninhas, lagartos, aranhas, timbus, morcegos, mariposas, besouros, zangões, abelhas, sapos, sapinhos, pererecas, de tudo um pouco para salvarmos por aqui, além dos habituais gatos, cães e saguis. Mas nada disso me cura da dor das perdas irreparáveis de flora e fauna dos nossos biomas secos e incendiados. Que dor enorme ver as carcaças de animais que morreram, em seus habitats naturais, queimados, de sede, ou de evaporação de suas almas e eu nada pude fazer para evitar.
Texto: Giédre Benatto em colaboração
Imagem de Adi Jose Cichovicz Musskoff Adi J.C.Musskoff por Pixabay
Texto de pura beleza. Narrativa envolvente. Realidade semelhante á minha no quesito salvamento/acolhimento.
Obrigada Rosângela. Concordamos com sua opinião, é um texto envolvente.
Obrigada Gi, por mais um texto envolvente. Beijos
Obrigada! Perfeito para todos os momentos.