Já é sabido por todos que o coronavírus veio pra tumultuar as nossas vidas. Ele veio querendo impor algumas regras. E, na verdade, não lidamos muito bem com elas. Principalmente as famílias desestruturadas, aquelas que não têm fronteiras muito bem estabelecidas, aquelas cujos membros não sabem qual função exercem dentro do sistema familiar. Os subsistemas estão com os sentimentos à flor da pele. São tantas notícias e informações que não sabem bem ao certo o que vão filtrar. A única coisa certa é: precisamos aprender a nos permitir a sentir, para posteriormente escolhermos (ou não) a nos adaptar ao novo.
Não se desespere e tampouco se sinta incapaz se não conseguir se adaptar. Não dê ouvidos ao senso comum que sempre nos diz: “Um isolamento familiar deveria ser uma benção, uma dádiva se ter uma família, vamos ter tempo para conversar, brincar com os nossos filhos, ajudá-los nas tarefas de casa, ter a nossa intimidade, cozinhar finalmente todos os dias pra minha família para suprir a minha falta enquanto estava fora, ser uma exímia dona de casa, professora, cuidadora e melhor esposa”.
A relação familiar, quando é bem estruturada, realmente nos proporciona muitos momentos prazeirosos. Mas não se engane: a grande maioria das famílias não é tão coesa e estruturada assim. Não é tão fácil lidar com as nossas teias familiares. Às vezes, a relação é motivo de muitos percalços e adoecimentos. Não podemos nos esquecer que, antes da crise do coronavírus, algumas famílias já estariam passando por outras crises que são comuns enquanto processo de existir. Crises como por exemplo: divórcio , comunicação violenta com os pais, doenças, filhos na adolescência que trazem uma disfunção na estrutura familiar, famílias com filhos pequenos, desemprego, abuso de álcool ou entorpecentes, crises naturais do ciclo de vida, por exemplo, quando a família tem um membro que está passando pelo estágio tardio da vida e que, certamente, mexe com com as relações. Violência psicológica, pobreza extrema e tantas outras.
O confinamento trará, nas relações, um desgaste maior – um calçado fora do lugar, uma comida que não ficou tão ao seu agrado, filho que não acordou na hora de costume, o esposo que está trabalhando em home office e que, por conta de não suportar os trabalhos domésticos e ter dificuldade de estabelecer uma função dentro de casa, estende-se no trabalho além do necessário; quarto bagunçado, xixi do cachorro.
É possível que essas coisas sejam motivo de uma grande discussão encalorada. Assim sendo, as crises ficarão mais exacerbadas. O motivo talvez não seja a comida, nem o calçado fora do lugar, nem o cachorro; mas, sim, o desgaste já estabelecido nas relações diante das crises citadas acima.
Mesmo que os membros tenham tendência à resiliência à capacidade de serem empáticos, em algum momento, o convívio certamente será afetado por conta das outras funções que também estabelecemos diante das nossas vidas e que, por conta delas, fomos obrigados, bruscamente, a nos distanciar. Amizades, redes de apoio, trabalhos… Infelizmente, o que está sendo passado é que o vírus também tem esse poder, de fazer com que as famílias mudem de uma hora para outra a forma de relacionar-se que há anos fora estabelecida emocionalmente. Não existe esse possibilidade. Existe a possibilidade de adequação. E é sobre ela que podemos refletir. O respeito, por exemplo, à individualidade. Seria uma ótima oportunidade para tentarmos compreender que regras, às vezes, não são possíveis de enquadre e tudo bem.
Vamos ter que tentar lidar. Você não precisa achar que fracassou. Vamos nos sentir mais ansiosos, cansados, desiludidos, é claro que vamos. Isso é ruim ? É. Leva um tempo para compreendermos que através das crises podemos evoluir emocionalmente e nos tornarmos mais sábios.
Quem sabe com esse aprendizado possamos também modificar o que foi imposto e que pensava-se que era o certo.
Quem sabe com essa convivência familiar forçada, eu compreenda que não preciso dar conta de tudo, não preciso e não sou obrigada a tolerar ou ter que fazer tudo para me adaptar.
“Se eu sou responsável, o outro também deverá ser”. Na medida que a comunicação for mais respeitosa e minha individualidade, preservada, talvez os membros compreendam que a colaboração pode ser apreendida e valorizada. Se, em algum momento, um membro familiar não consegue colaborar com minha forma de agir, eu possa ter mais paciência pra explicar, ou me permitir aceitar o que ele fez , mas fez da forma que ele conseguiu – isso já é motivo de evolução.
Penso que podemos tirar muitas lições. Teremos uma oportunidade única para lidar com o sentimento próprio e, também, com o do meu próximo, que, assim como o eu, está também perdido e confuso, com dificuldades para entender e aceitar que é somente pelo viés do SENTIR que chegaremos a um lugar onde haja espaço para um movimento e que dentre dele caiba um pouco mais de empatia, resiliência, compaixão e respeito mútuo, além de várias outras possibilidades para percebermos que o processo de estarmos todos juntos poderá também provocar mudanças importantes na estrutura familiar e impactar de alguma forma o comportamento e o relacionamento de seus membros.
Texto : Sílvia Pilon – Texto: Sílvia Pilon – Psicóloga formada pela Universidade de Cuiabá, especialista em Terapia de Famílias, Casais e indivíduos pelo CEFI (Centro de Estudos da Família e Indivíduo) de Porto Alegre – RS. Contato: 65-99981-9484
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