Há meses que não te escrevo, desculpe. É que às vezes, o que tenho aqui dentro é tão disforme, que não sei como extrair de mim. Porque se fosse algo espinhoso, eu saberia que precisaria de uma pinça e band-aid. Se fosse algo líquido, talvez um pano e um balde. Mas tudo que é indefinido desde quando surge, na forma, na textura ou sabor, tudo que não tem nome ou cor, é certamente mais complicado de se manusear, de se tecer…
Nesse meio tempo, entre a última vez que escrevi pra você e agora, tanta coisa aconteceu, tanta.
Não vou saber contar em ordem cronológica. Dias e meses passam e voltam em pequenos soluços doentios, regurgitando as coisas do espaço que não couberam no tempo ou as coisas do tempo que não acham mais morada no coração. Os dias tanto acabam de repente como podem custar a terminar.
Começo com a memória mais presente, porque penso nisso todos os dias. Pedro.
Pedrinho morreu. Despediu-se de nós na porta do quarto, nos meus braços e de Zuza. Foi tão cruel! No dia seguinte, ainda vivendo um luto silencioso por Pedro, seu amigo-irmão Ginger precisou ser internado com uma grave infecção urinária. Acho que envelheci cinco anos em uma semana com os desdobramentos dessa aventura Gingesca. E hoje, lá está ele deitado em seu galho preferido do cajueiro.
O Natal também chegou a cavalo, digo renas. Aconteceu em meio à epidemia da gripe e mais uma mutação do vírus da covid. Fui sorteada com a gripe, mas logo me recuperei.
Tomei a terceira dose da vacina, a dose de reforço. Zuza também conseguiu tomar na mesma ocasião, poupando-nos de sairmos mais uma vez nos ônibus precários do município. Isso foi quase uma insanidade, pois se os dois tivéssemos tido reação, quem iria buscar um copo d’água para o outro, fazer o almoço, a tapioca?
Zuza, mais tarde, adoeceu com sintomas de Chikungunya, que não se confirmou.
Fiquei mais velha em janeiro, Zuza em fevereiro. Lulu soprou suas velinhas em março e para ela, nós assamos um bolo muito gostoso.
Sem nenhum pingo de juízo, resgatamos uma cachorrinha do possível coito de vários cães (não todos ao mesmo tempo, claro – não era suruba, mas quase) que por dias a cercaram inebriados pelo odor de seu cio. Conseguimos castrar a bichinha, que já contava com cinco feijõezinhos a bordo.
A estação das chuvas chegou cedo, enxaguando o verão. Como em “As Águas de Março”, mas em fevereiro, a chuva chegou. Chegou e se estendeu. Chegou com paus, pedras e morros descendo inteiros, devorando tudo abaixo de si, nos avisando que estamos chegando ao fim do caminho.
Mais uma guerra sangrenta e cruel estourou, dessa vez, envolvendo Rússia e Ucrânia. O doido da Coréia do Norte também anda brincando de explodir. Dessa vez enviou mísseis transcontinentais para explodirem no mar ao sul do Japão, como se o mar não estivesse repleto de vidas.
E aqui no Brasil, entre todas as péssimas notícias, vou citar a mais leve, mas que ainda assim me causa revolta. Diminuíram sensivelmente o tamanho de quase todas as gostosuras e suas embalagens. Ontem fui comprar biscoito Maria para acompanhar meu café das cinco e vinte e me dei conta que eles viraram quase nada. Tive que atrasar o evento “Café da Tarde” com Biga, que geralmente aconteceria às 16:20, por causa de minha aula. Voltando aos biscoitos, quando peguei a embalagem que vem com três pacotes eu não acreditei. Tudo era diminutivo aos meus olhos. O peso líquido, pesinho, o tamanho e forma dos biscoitos, disquinhos, e a quantidade, pouquinho.
Os caras de terno, perfume da moda e carros caros continuam a rondar nossa casa, a nos contar mentiras, propor negócios estranhos. Continuamos sem dormir bem à noite, sem saber até onde eles podem chegar com tamanho interesse por esse pedaço de chão. Certamente nenhum deles é flor que se cheire.
Nossas flores aqui, por outro lado, estão lindas e um casal de beija-flores visita nosso jardim diariamente. Acho que o beija-flor escuro de cauda longa tem uma companheira fixa, sempre aparecem juntos. Já o beija-flor verde oliva de cauda curta parece estar apaixonado pela libélula que se senta no fio de luz ao seu lado todos os dias. Eu sempre os vejo e penso na improbabilidade de serem um casal, mas a ilimitada poesia do existir insiste na ideia de serem, pois voam e brincam um com o outro do mesmo jeito que o casal de cauda longa faz.
Os timbus continuam passeando por aqui à noite, derrubando tudo que encontram no caminho. Acho que ficam mais famintos nesse período e cuidamos de deixar algo para eles se alimentarem distribuído em diferentes pontos do quintal. Falando em timbus, Miojo, o bebê timbu que a Maga encontrou abandonado na calçada, morreu com dignidade e barriguinha cheia, essa manhã.
E isso ficou ecoando em minha mente. Como morrer dignamente quando tudo no mundo anda meio distorcido, e o metaverso já confunde o que é real e o que é imaginário, invertendo os lados do espelho? Já nem sei se é o texto que me escreve ou eu que escrevo o texto.
Assim, termino por aqui, te desejando um mundo real digno de teus valores. Cuida do teu jardim. Um dia, nos abraçaremos novamente.
- Texto: Giédre Benatto, em colaboração.
- Imagem: Ron Lach, por pexels.
Lindo, lindo… caiu um cisco aqui!
Ow, Lulu. Que bom que gostou!
Te amo
Que texto lindo! Emocionei!!
Vc é demais!!Escreve com a alma e sempre me emociona!!!Através das tuas palavras a vida segue…
Bjo enorme e um abraço apertado!!!
Um texto que te remete ao momento ali vivido, um aconchego na alma ao ler. Um brinde a você, que é uma pessoa tão iluminada, fazem das palavras simples virarem complexas diante de tanta beleza! Te amo Gi!
Que profundos seus sentimentos ❤️
Que texto ! Quase palpável.
Amei. Sempre sensível e tocante!
Irmãs que se escrevem… E vcs fazem isso em prosa que é poesia. Parabéns, Giedre. Amo vc. Amo como escreve e me faz estar aí, sentindo o aroma das flores, ouvindo os passarinhos e imaginando o que querem os engravatados!
Palavras encantadoras descrevem sentimentos vívidos que são projetados como um filme diante dos olhos leitores.
História maravilhosa Vane!! ❤