Minha casa. Lá pelos anos 80.
Quando as coisas começavam nesse tom, com certeza eu já estava com um problema. Em regra, um problemão.
– Ele não foi, mãe, estou dizendo. Fui só eu.
– Mas que coragem para mentir.
O caso era que eu tinha ido com o meu namorado passar o fim de semana na casa de uma amiga em Florianópolis. Nem me lembro se aí eu já namorava há anos ou se eu já estava noiva. No mínimo pré-noiva eu já estava. Eu tinha pedido para ir para lá, mas jurei sobre tudo e todos que eu ia sozinha. Não sei como minha mãe descobriu que o pré-noivo fora junto. Minha mãe tinha sido um perdigueiro na encarnação passada. Disso eu tinha certeza.
– E essa nota aqui no nome do pré-noivo?
(Esqueça esse negócio de “você mexeu nas minhas coisas”; não existia. A máxima do meu pai era: quem come do meu pirão obedece do meu cinturão. E os regulamentos, decretos e portarias emanavam desse preceito da constituição dele.)
– Então se a senhora achar uma nota da lua quer dizer que eu fui para a lua?
– Marcia Regina, eu não estou de brincadeira.
– Nem eu, deve ser uma nota de um dia que o pré-noivo foi para Florianópolis e misturou com as minhas coisas.
– Tem data de ontem.
– P*** m*****
– Liga para a fulana dona do apartamento, pergunta se eu fui sozinha ou com o pré-noivo.
– Acha que eu nasci ontem, é?
– Não senhora, é que eu juro por tudo que eu fui sozinha, só não sei como eu faço para provar.
– Está bem. Eu vou contar para o seu pai e você se entende com ele. Olha no relógio. Ele chega em 15 minutos.
– Ferrou. Mas ferrou ferrado mesmo. Minhas opções seriam escalpelamento ou ser enterrada viva. As bruxas da inquisição se assustariam com a minha pena.
Porta bate. Ela sai do quarto. Inicia-se a contagem regressiva para a tortura.
Um carro para lá fora. Barulho do portão abrindo, ou melhor, arrastando no piso de são caetano. Barulho da porta de vidro abrindo, puxa os pinos, arrasta a porta e prende nos calços. Volta. Entra com o carro. Fecha o portão, fecha a porta. Barulho da porta de vidro do vestíbulo. São duas, uma de ferro e uma de vidro. Sempre batem. O pai grita “cheguei” vai para a cozinha. A porta abre e demora para fechar porque tem aquele trequinho de mola lá em cima para fechar sozinha. Já parei de respirar há 15 minutos.
Estão deliberando minha pena. Sem perceber vou andando para trás, me encosto no guarda-roupa que me abraça dizendo que não pode fazer nada. Eu sei. Olho para a janela. E se eu pular? Só falta a coragem. E se eu cair e fingir um ataque epilético? Não levo o menor jeito.
Ele sobe a escada, vira à esquerda, segue reto no corredor e abre a porta do quarto com tanta força que as dobradiças gemem de dor. A chave da porta dá um salto mortal, duas piruetas e cai desmaida no carpê. Ele sempre abre a porta assim. Ele inicia os primeiros passos em minha direção. Duros, militares. Mais um pouco ele marchava.
– Marcia Regina.
Ele ergue o braço direito. Fecho os olhos. Ele começa a bater palmas.
– Almoço na mesa, a mãe está esperando. Cadê sua irmã?
Ela nunca contou para ele.
Texto: Márcia Regina Nunes de Souza. Em colaboração
Foto de Daria Shevtsova no Pexels
*Os textos dos colunistas em colaboração são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente expressam a opinião do VIVAZIDADE.
Texto maravilhoso. Narrativa envolvente. Parabéns
Adorei o texto ! Muito envolvente !!!!
Texto ótimo. Cheio de movimento. Gostei muito.