Todos nós, que escrevemos ou lemos muito, guardamos um desejo inocente. Aquele de escrever uma obra tão boa, tão impactante, tão interessante, engraçada, misteriosa, seja lá o que for, mas que seja capaz de eternizar nosso nome no meio literário. E mesmo que não alcancemos o sucesso global, se pelo menos pudermos seguir escrevendo e viajando em nossos próprios escritos, já é um enorme passo rumo a um ser crítico, e passamos a ver oportunidades em qualquer ocasião. Essa é uma delas.
Sempre achei curioso assistir a máquina de lavar roupas funcionando. Mais especificamente aquele modelo cuja tampa é transparente e nos permite assistir as peças sendo engolidas lentamente, alternado posições com outras que emergem no vai e vem do batedor central, ou, nos modelos de tambor deitado, vê-las tombarem desmaiadas durante o rolar de lavagem. Minha queixa atual é que a maioria das máquinas com o tambor deitado agora usam uma proteção escura no visor da porta e eu não consigo mais acompanhar a lavagem. É sobre a lavagem da roupa suja que quero falar.
Tem chovido muito nesse inverno, mas naquele dia, o sol abriu e resolvi que a roupa de cama e banho seriam as primeiras a serem lavadas. Após lotar a máquina com lençóis, fronhas, colcha e todas as toalhas do banheiro e de esperar a lavagem terminar, tirei cada peça da máquina, as sacodi para alongar as fibras e posteriormente pendurá-las. O vento soprava brincalhão. O sol, ainda tímido após tantos dias ausente, também dava àquela manhã um tom de renascimento.
Foi então que percebi um momento interior de total afinação com aquela realidade, a realidade do lavar. O perfume das roupas recém enxaguadas com amaciante e que ainda entregava um suave toque do desinfetante (tempos de pandemia), despertaram uma vontade imensa de escrever sobre o que aquilo representava naquele exato momento.
E naquele exato momento, lavar a roupa suja representava a retomada possível da vida.
Talvez a imagem da seguinte cena ocorra espontaneamente a alguém quando falamos de um dia chuvoso: Uma casa ou um apartamento comum, com cômodos comuns, uma decoração aconchegante, onde a chuva cai do lado de fora. A mocinha, em pé, segura uma caneca de café com ambas as mãos, olha pela janela e solta um suspiro melancólico. Essa, certamente, não é minha cena nem o meu cenário.
Moro com meu companheiro numa casa aberta, de uma porta só, a do nosso quarto. Meu estúdio, a cozinha e a lavanderia são totalmente voltados para o quintal, nossa sala de estar. Todos os espaços têm cobertura, mas são totalmente abertos, voltados para nossas plantas que se espalham por toda a área. Temos das pequenas, como as suculentas, mas também flores, cactos, hortaliças, babosa, samambaias, avencas, trepadeiras e várias frutíferas. Algumas de nossas plantas são arbustivas e algumas são árvores um pouco mais robustas. Temos até um baobá jovem que ganhamos de presente quando ainda uma mudinha tímida. A maior árvore do espaço, no entanto, é um cajueiro. Assim, nossa casa é aberta para o quintal em torno do mestre Cajueiro.
Aqui, quando chove, a gente vive a chuva como algo muito vivo, muito presente, que às vezes, penetra na gente, em nossos afazeres. A chuva conversa com tudo no ambiente, até com o vento e o som das ondas enfurecidas do mar que é logo ali, duzentos e dezessete passos em linha reta. Tudo aqui fica úmido, o ar, as roupas, as superfícies, o interior. Em pouco tempo, tudo cheira a mofo fresco.
Nesse contexto, aquela roupa lavada representava tudo mais que eu queria lavar, em tempos assim de clausura. O lavar a roupa carrega em si uma dose poética de realidade e de simbolismos. Tirei e cheirei cada peça lavada com a sensação de que aquele aroma me provocava novos sentimentos, ou me curava os antigos. Depois de pendurá-las cuidadosamente no varal, puxei meu banquinho verde com pintura de gata à Frida Kahlo, presente de minha irmã Lulu, e relaxei admirando a dança perfumada dos lençóis ao vento.
Texto: Giédre Benatto em colaboração
Imagem: Rudy and Peter Skitterians por Pixabay
Sempre textos deliciosos de se ler e se deixar levar pelo tema… Me senti fazendo o mesmo e sentindo o mesmo também… Parabéns!! 🥰🥰
Lulu, vc faz parte dessa e de muitas outras histórias! Te amo.
Isso é coisa de gente que sabe o que fazer com as palavras e tem sensibilidade o suficiente para se deixar envolver pelos tecidos cheirosos e por toda a trama da qual somos feitas. Haja coragem! Parabéns. Vontade de pegar um outro banquinho pra ficar sentada ao seu lado.
Gosto de dar um tom poético nos afazeres do dia a dia. Cora me ensinou isso. Simone me ensinou a provocar o universo com nossa liberdade de escrever e Isabel me ensinou a não perder oportunidades de colocar em palavras o que vivemos e como interpretamos o nosso mundo. Obrigada, querida. Bjs
Amei, gi! O seu texto me fez lembrar com perfeição os dias que passei aí com vocês.
Que belo texto, viajei lendo, reli, refleti, imaginei a casa com os detalhes do banquinho que você sentava, e fiquei com a curiosidade de ver como minha roupa eylavada na minha máquina de lavar, senti que não é apenas um simples ato, mais sim, um momento nosso, com nossos pensamentos,nossas lembranças,nossas
âncoras do dia a dia que já havíamos esquecido, a pandemia nos resgatou o sentido de gostar das pequenas coisa. Obrigada reflexão, beijos.