“Dia desses, um grande amigo que conheceu minha avó Gecília me disse que eu estava parecida
com ela. Com minhas sobrancelhas mais ao estado natural, disse-me que ao me ver, lembrou
dela. Em outra oportunidade, este mesmo amigo afirmou que eu me parecia com ela em alguns
trejeitos. Não sei.
Quem conheceu minha avó, Gecília de Castro Garbaccio, com certeza guarda dela alguma
lembrança. Não foi uma unanimidade de gentileza e candura, não mesmo, mas foi marcante e
intensa. Antes de adoecer, sua presença em qualquer lugar era o suficiente para provocar
diversos tipos de reações, de pura admiração e amor ao completo constrangimento.
Do alto de seus 155 centímetros, minha avó nascida em 1928 dirigia por tudo, inclusive na
estrada, fazia aulas de natação, assistia programação internacional quando ninguém fazia isso,
tocava piano, pintava, falava algumas línguas e entendia várias outras. Nunca a vi cozinhando.
Minha lembrança mais marcante da infância com ela era o livro sobre Gnomos. O livro mais
lindo que já vi. Ela me presenteou com a edição traduzida para o português e peguei pra mim o
livro que era dela, em inglês, o qual tantas e tantas vezes sentamos as duas para ler, folhear,
olhar as figuras e imaginar até chegar a ter certeza absoluta que eles – os Gnomos – estavam
por ali, na chácara, no apartamento ou na praia.
Revisitando minhas lembranças, percebo que foi nela que percebi como era ser uma pessoa que
ama livros, cores, histórias, viagens e música. Mas também nela eu via alguém cheio de
preconceitos e, até mesmo, intolerância. E então, sem capacidade de compreender as raízes
daquelas posições duras e até mesmo irracionais, eu me afastei. Fiquei distante do preconceito
e da intolerância e acabei perdendo todo o mais que ela era.
Sou alguém que nunca teve convicção em dizer aos filhos que o Papai Noel trazia os presentes,
que a Fada do Dente dava dinheiro ou que quando a pessoa morria virava estrelinha. Não sou
do lúdico ou da criatividade. Não sei fazer trabalhos manuais, desenhar ou pintar.
Até aí, tudo bem, durmo bem com isso. O difícil é perceber que não fui capaz de dar aos meus
filhos a possibilidade de acreditar nos Gnomos e em acompanha-los numa viagem deliciosa
(drugs free) ao encontro deles. Não há mais tempo, não tenho mais essa possibilidade. Essa
janela fica aberta por poucos e velozes anos, os quais já passaram. Foram poucas as vezes que
mostrei a eles o Livro dos Gnomos, não fiz que o momento fosse significativo.
Minha avó fez. Quando eu estava com ela, nem lembrava de ligar a televisão. Eu tinha o Livro,
nossas conversas, uma tela em branco no cavalete, tintas e pincéis. Acredito que ela logo
percebeu que eu não herdei o dom da pintura, mas ela dizia: “se não sabe desenhar, Laurinha
(nunca me chamou de Muki e brigava com quem fazia isso, ou seja, todo o resto do mundo com
exceção do meu avô), observe as cores, misture, separe, sinta o que cada uma te diz”. Não me
diziam nada, eu voltava para meus Gnomos, muito mais interessantes e falantes. Então ela
decidiu que eu deveria tocar piano. Acabou achando uma professora de teclado e lá fui eu, bem
feliz fazer aula na Yamaha. Ela era minha maior entusiasta nos ensaios e nas apresentações.
Hoje, nos meus quarenta e poucos, queria que ela estivesse aqui. Agor consigo entender as
raízes de alguns de seus pensamentos e gostaria de conversar com ela sobre liberdade das e
para as mulheres, relacionamentos, ateísmo, suicídio, desigualdade, racismo… Com certeza
discordaríamos sobre quase tudo. E é isso que eu queria, a possibilidade de discordar sem me
afastar.
Ontem encontrei um vizinho que não via há uns 20 anos. Nos reconhecemos e ele falou: “você
lembra muito a sua avó Gecília, sabia?”. Respondi que sim e que ele não era a primeira pessoa
a dizer isso. Agora, na casa da praia, na qual não cheguei a estar com ela a procura de Gnomos
nem trouxe o Livro para ler enquanto meus meninos eram pequenos, estava observando um
quadro que ela pintou. Uma janela, sol, sombra, perspectivas e gerânios. Achei tão lindo. Cada
uma das cores me dizendo tanta coisa. Coisas que apenas na maturidade conseguimos ouvir.
Adivinha meu plano pra 2021? Tocar piano e ler com a minha sobrinha de 7 anos o Livro dos
Gnomos. Nem sei se a janela dela ainda estará aberta para a viagem…”
Resgatei este texto maravilhoso da Laura nas minhas conversas outro dia. Pedi licença para
publicá-lo e me permiti viajar na saudade com ele.
- Texto: Laura Garbaccio Vianna Erzinger, em colaboração.
- Imagem: foto stock
Fiz parte dessa história, vivi cada sentimento que a Muki descreveu.
Como a entendo!!!
D. Gê, fez parte da minha vida. Com ela aprendi que amar é ação. Cada um do seu jeito, mas o que não faltava nela era amor, generosidade e bondade. As vezes dura, com comentários ácidos, mas sempre disposta a ajudar.
Amei a D. Gê. Sou grata a ela por tanto que cuidou de mim, me agradou e me ensinou. Assim como eu, muitos outros foram agraciados pela bondade dela.
Lindo relato, Muki!!
Também tínhamos o livro das gnomos,
Apesar de tudo isso, ela era bem divertida também, não é mesmo?
Parabens pelo texto, Laura! Delicado e sensível sob a perspectiva de relacionamento com nossos familiares e suas dificuldades e maravilhas que só reparamos quando amadurecemos!👏🏻
Obrigada em nome da Laura.
Meu convívio foi curto, mas a lembrança não me trai. Vô Santo e Vó Ge. Fui recebido com muita atenção e até uma certa curiosidade. Por trás do todo, um olhar extremamente carinhoso de ambos. Sempre um sorriso. Eu me senti acolhido e amado. O texto justifica as percepções que tínhamos dela. Amável e “forte” ao mesmo tempo. Que os Gnomos permaneçam entre nós!!! ❤️ Família Garbaccio.
Perfeito Leal. Gostei do detalha da “curiosidade”.
Aí que saudades que senti! Que saudades que sinto, sempre que releio esse texto.