Me mudei para o atual bairro há três anos. Por ficar ao lado do zoológico da cidade, no campus universitário e por estarmos localizados próximos do pantanal, somos – eu e o bairro todo – presenteados com aves que buscam refúgio nas árvores frutíferas do campus, nas sombras, nos alimentos, antes fartos, deixados abertos para os animais do próprio zoológico e os que descobrem o restaurante animal.
Pela manhã muitas aves migram para o pantanal enfeitando a paisagem daqui até aquele santuário ecológico e voltam, nos fins de tarde quentes de Cuiabá, em formação aérea em V, floreando o céu, alguns silenciosos, outros grasnando durante o voo.
É fácil encontrar periquitos, garças, miquinhos, todos alvoroçados nas poucas matas do bairro. Também araras, voando em casais, gritando a felicidade de estarem num namoro constante.
Sou daquelas que, mesmo no meio da caminhada em ritmo acelerado, interrompo o exercício para olhar a natureza – árvores que desabrocham – ipês, aricás, flamboyants, mangueiras com frutos, cajueiros; colho flores e brinco com gatos de rua. A caminhada pode esperar. A natureza me surpreende e arrepia. Ela merece que eu desacelere, pare e sinta a paz, a respiração mais calma, o que acontece à minha volta.
Pelas manhãs, quando retorno das minhas caminhadas ou academia, espero visualizar dois tucanos que adotaram as palmeiras e árvores frutíferas das casas e do shopping center vizinhos, como seu lar. Nesses três anos já os vi inúmeras vezes bicando a própria imagem refletida nos vidros externos do centro comercial. Nunca me pareceram irritados ou brigando, sempre entendi que era pura curiosidade de saberem quem estava do outro lado do reflexo, do vidro, tal qual nós quando crianças, nos descobrimos espelhados em qualquer superfície.
Segunda-feira, enquanto treinávamos, nós alunas comentamos sobre os tucanos. Ultimamente apenas um deles rodeava a academia e aparecia no telhado do shopping do outro lado da rua. Teorias foram lançadas – o calor da cidade nesta época do ano, a fêmea deveria estar no ninho com filhote, o gavião que também vigia o bairro poderia estar por perto… Cada uma dando um palpite enquanto o tucano pulava com as perninhas juntas indo de um lado ao outro do telhado, sem saber que era o assunto da roda de ginástica.
Ontem, terça-feira, algumas de nós notamos que o tucano não havia aparecido.. Nem sei porque falamos tanto deles, pois às vezes eles não davam o ar de sua beleza justo no horário da nossa aula. Era como falar do clima, da pandemia, dos exercícios pesados… parte de nossa rotina. De qualquer forma, não o vi nem lá, nem depois nas palmeiras onde costumava ficar até o sol arder e procurar sombra ou se afastar do movimento da cidade que começa a funcionar.
À tarde fico sabendo que um dos tucanos havia sido encontrado morto na calçada em frente ao shopping onde costumava pular no telhado, bicar os vidros, voar entre o telhado e as árvores na calçada. Ninguém sabe o que aconteceu, ninguém viu. Simplesmente foi encontrado caído, em um dos canteiros, sem vida, olhos vidrados e opacos. A moça que o encontrou estava com ele no colo, como uma criança deitada depois de mamar gostoso. Ela também numa tristeza só.
Ela gravou um vídeo inconformada contando da morte do tucano. A cena me atingiu como se a ave fosse meu animalzinho de estimação. Eu me sentia amiga próxima dele. Chamava filha e marido para vê-los sempre que estavam por perto e eles nas árvores da redondeza e havia comentado que só um deles estava aparecendo pelas manhãs. Esperava que um dia voassem para a minha sacada e eu os visse aqui, pertinho de mim.
Continuo ansiosa para saber onde estará o/a parceiro/a, se teremos um tucaninho nas redondezas… Agora terei que aguardar. Tenho certeza que minha rotina mudará, todos os dias enquanto regar as plantas na sacada, na caminhada ou na academia, vou olhar para fora e procurar. Esperar que o outro, quem sabe, apareça com o filhote e o ensine a voar aqui pelo bairro e embelezar meu dia (e de quem os acompanhava por aqui) trazendo o ar pantaneiro, do campo, para o coração da cidade.
Imagem de carlitocanhadas por Pixabay
Lindo e emocionante Gica! ❤️
Obrigada. Uma “Cenas do Cotidiano” triste que precisava sair de mim.